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A insegurança alimentar em Quarto de Despejo

  • Foto do escritor: Bianca Melo
    Bianca Melo
  • 15 de mai. de 2022
  • 4 min de leitura

Quarto de despejo. Essa é a forma como Carolina Maria de Jesus chama a favela, um lugar onde ficam os pobres esquecidos pelo resto da sociedade. Foi convivendo com as consequências desse esquecimento que Carolina lutou dia e noite para criar seus filhos, mesmo que isso significasse se submeter a passar fome para que eles tivessem o que comer.


“Eu denomino que a favela é o quarto de despejo de uma cidade. Nós, os pobres, somos os trastes velhos.”

Carolina Maria de Jesus foi uma das mais renomadas escritoras brasileiras do século passado. Quarto de Despejo – Diário de uma favelada é sua obra mais conhecida, e foi nela que Carolina apresentou a todo o Brasil o retrato de uma favela dos anos 1950. Ela vivia na Favela do Canindé, em São Paulo, em meio à pobreza e ao preconceito. Por mais que tantos anos tenham se passado, seus escritos ainda são dolorosamente atuais.


O elemento que persegue a realidade de Carolina do início ao fim é a fome, consequência do escasso dinheiro que consegue trabalhando como catadora. O preço alto dos alimentos faz com que ela precise estabelecer um racionamento forçado de comida junto com seus filhos, chegando ao ponto de passarem dias sem ter o que comer. Em diversas passagens, Carolina afirma que vai deitar sem saber se acordará no dia seguinte, e se acordar, não sabe se conseguirá alimento. Também retrata os sintomas da fome: pele amarela, dor de estômago, sono excessivo, tonturas e vontade de desmaiar.


“Eu estou triste porque não tenho nada para comer. Não sei como havemos de fazer. Se a gente trabalha passa fome, se não trabalha passa fome” (p. 146).

Esse é o mais sombrio retrato de um País que convive com o fardo da insegurança alimentar sobre grande parte de sua população. O Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar lançado em 2021, apontou que 19 milhões de pessoas viviam em situação de fome no Brasil em 2020, o ano da pandemia da Covid-19, que trouxe alta nos preços dos alimentos, crescimento do desemprego e a redução do poder de compra.


Mas não para por aí. A fome possui inúmeros contextos históricos, afinal, não é à toa que nossa Carolina tenha sido uma mulher negra. Dados da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Penssan) mostram que entre a população que sofre com insegurança alimentar no Brasil, 59,2% são pessoas negras.


13 de maio
Hoje amanheceu chovendo. É um dia simpático para mim. É o dia da Abolição. Dia que comemoramos a libertação dos escravos. Nas prisões os negros eram os bodes expiatórios.
[...] A Vera começou pedir comida. E eu não tinha.
[...] E assim no dia 13 de maio de 1958 eu lutava contra a escravatura atual – a fome!”.

Como se já não bastasse o racismo estrutural, direitos básicos ainda são negados a essa parcela da população, que precisa lutar contra as amarras do sistema para conseguir sobreviver. Por isso, Quarto de Despejo é um livro para quem tem estômago forte para imaginar a dor da fome e da miséria, para vislumbrar a luta por um prato de comida. Em diversas passagens, Carolina relata a busca por comida no lixo. Era a última alternativa quando não conseguia dinheiro com a venda da sucata coletada. Mesmo tendo consciência de que a comida que era descartada poderia ser a fonte de inúmeras doenças, a fome falava mais alto.


“[...] os meus filhos vieram dizer-me que havia encontrado macarrão no lixo. E a comida era pouca, eu fiz um pouco do macarrão com feijão. E o meu filho João José disse-me:
– Pois é. A senhora disse-me que não ia mais comer as coisas do lixo.
Foi a primeira vez que vi a minha palavra falhar. Eu disse:
– É que eu tinha fé no Kubstchek.
– A senhora tinha fé e agora não tem mais?
– Não, meu filho. A democracia está perdendo os seus adeptos. No nosso paiz tudo está enfraquecendo. O dinheiro é fraco. A democracia é fraca e os políticos fraquíssimos. E tudo que está fraco, morre um dia. [sic]” (p. 42).

Apesar de seu pouco estudo – Carolina não chegou a terminar o ensino fundamental –, ela se mostra uma pessoa politizada e consciente de seus direitos. Ela não se ilude com discursos políticos e não é a favor do voto de cabresto (que, segundo seus relatos, era uma prática frequente na favela, e sabemos que é recorrente até os dias de hoje nas mais diversas periferias ao redor do Brasil). Isso fez com que sua personalidade fosse inquieta, inconformada com a situação em que vivia, com a miséria que a cercava. A coisa que mais desejava era sair da favela.


“O meu sonho era andar bem limpinha, usar roupas de alto preço, residir numa casa confortável, mas não é possível. Eu não estou descontente com a profissão que exerço. Já habituei-me a andar suja. Já faz oito anos que cato papel. O desgosto que tenho é residir na favela” (p. 23).

Carolina Maria de Jesus prova em Quarto de Despejo que não precisa de muito estudo para entender o mundo ao seu redor. A vida, com o perdão do clichê, foi sua maior professora. Foi com sua experiência ao retratar a rotina de uma favela, que Carolina conseguiu fazer sua voz ser ouvida. Ela ainda hoje é símbolo de resistência e sobrevivência em meio ao caos de um Brasil que em pleno 2022 ainda precisa aprender que a fome não pode mais ser tolerada.

 
 
 

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